terça-feira, dezembro 28

Um sorriso e um Maltrapilho

UM SORRISO E UM MALTRAPILHO
(Uma Crônica de Natal)
Simão de Sines
1. Alguns dias após o Natal, no dia 28 de Dezembro, a mocinha bem trajada, sorridente e de bem com a vida, voltava para casa, depois de mais um dia de trabalho normal.
Normal foi o dia de trabalho, mas na volta reservou-lhe um encontro muito especial. Não, não foi o seu príncipe encantado que ela encontrou. Foi um encontro incomum.
Não tire  conclusões apressadas, meu caro leitor/minha cara leitora.
Ao chegar ao ônibus, o coletivo em que regularmente  volta para casa, logo viu que estava excepcionalmente vazio contrariando a expectativa daquele horário, quando todas as conduções passam apinhadas de gente, cansada ansiosa por voltar a lar.
O ônibus carregava apenas um passageiro, sentado nos fundos do coletivo, no último banco.
A jovem que não gosta de viajar desacompanhada, caminhou até o banco de trás e sentou-se ao lado do viajante solitário.
Viu que era um homem mal vestido, sujo e mal-cheiroso, mas não se desviou de sua intenção. Sentou-se ao seu lado, tranquilamente, como se fosse um ato normal. E era de verdade, embora não seja comportamento muito comum, para algumas pessoas  “cultas”. Sempre alguém criticará:

- Ora, ora como pode ser normal, uma mocinha bem trajada e bem educada, de bem com vida, suportar sentar-se ao lado de um maltrapilho desleixado? É uma questão silenciosa que muitos se colocam, sem dizer nada.
Até aqui, o leitor assustado não está só. Muitos pensam assim e fogem assustados, de mão no nariz. Quem está costumado a superar obstáculos, seguirá sua consciência cidadã, de cabeça erguida...

2. No próximo ponto, entram alguns passageiros, homens e mulheres. Logo sentem a cena e, com horror, protestam com o motorista:
- Por que deixou um homem maltrapilho e malcheiroso viajar no ônibus coletivo?, protestava um.
- Por que não o expulsa para que todos possam viajar tranquilos e não incomodados, por gente tão ordinária?!, atiçava outro.
O chofer, tranquilo, respondia como devia:
- O veículo é coletivo e o passageiro pagou a sua passagem. Está quietinho sem incomodar ninguém.
- Se ele não sai, nós saímos. Não prosseguimos nesse veículo mal cheiroso. Era a ameaça de muitos.
Parado o ônibus, todos os novos passageiros se retiraram. Antes de sair olhavam, com certo desdém, para o maltrapilho e para a moça, sentada, tranquila a seu lado. Meneavam a cabeça com desconforto...
- Como você aguenta isto, criatura de Deus?
- Como suporta isto? Diziam com ar de asco e horror...
- Estou bem, dizia a jovem, sem pestanejar. Nos coletivos cada um ocupa o seu lugar. Não podemos a ninguém incomodar...

Dirigindo às pessoas sublevadas prosseguia:
- Olha, gente, o homem não tem culpa do que com ele se passa. Talvez a vida não venha sendo muito gratificante para ele, mas ele está vivendo como pode. Talvez esteja até com fome. Talvez alguém lhe negou um balde de água para se banhar, e um prato de comida. Eu sei lá! Nem sei se tem um canto para se abrigar! Numa situação destas, qualquer um de nós também estaria com um odor insuportável. O que lhe falta para estar bem é apenas um balde água e um pedaço de sabão. Nem sei se tem casa ou um cantinho para se recolher. Será que alguém pode ajudá-lo? Então, ao menos, não temos direito de incomodá-lo ou de maltratá-lo. A distância entre nós e ele é apenas um pouco de água. É só isso que conseguem enxergar?!Ou talvez falte esperança no seu coração... Alguém dê alguma coisa para ele. Vê-se que precisa, mas não pede. Está envergonhado. Não quer mais confusão. Quer paz!
- Gente, é  Natal! Tenham um pouco de compreensão e tolerância...

Todos foram saindo, calados de cabeça baixa e mãos nas narinas. Ninguém ouviu o que a jovem, tranquila, lhes dizia.

3. O coletivo prosseguiu sua rota marcada. Em cada ponto de paragem, novos passageiros entravam e tudo se repetia, com horror.
Após protestos, que viraram rotina, todos se retiravam, sob protesto. Uma senhora, ao sair, perguntou à mocinha.
- Você fica aí? Corajosa heim?!  O maltrapilho é seu conhecido, é seu parente?!
- Não, não! Nunca o vi antes. Mas é uma pessoa humana como nós. A vida certamente foi madrasta para ele. Por que o repelimos tornando seu dia mais amargo?! É Natal! Precisamos ser compreensivos.
Levantando-se, como por instinto, insistiu, em voz, mais alta:
- Gente é Natal! Vamos juntos!
Mas ninguém a ouviu.
Ninguém disse nada!
Todos se retiraram apressados...
  A cena se repetiu em cada paragem do coletivo.

Chegou o ponto onde a mocinha devia descer, para ao seu lar se dirigir. Levantou-se olhou o maltrapilho e lhe sorriu. Baixando a cabeça respeitosa, apenas disse: Bom Natal, moço. O homem não disse nada. Apenas sorriu abanando a cabeça, contente, como em agradecimento. Talvez fosse o único sorriso daquele dia.

A mocinha desceu do ônibus e dirigiu-se ao seu lar, preocupada...
Gostaria de ter uma casa onde pudesse deixar aquele homem repousar um pouco, se banhar e tomar um  lanche, para depois  prosseguir, rumo ao seu certo ou incerto destino.
Chegando à sua casa, ela encontrou pai, mãe e os sobrinhos que  a esperavam alegres e felizes. Sem revelar que algo a preocupava, abraçou pai e mãe e foi brincar, feliz, com as crianças, discretamente.
Horas depois, a sós, o seu coração ainda batia mais forte pelo acontecido. Sem o saber,  ela tinha encontrado o Mestre, que a tinha afagado, no mais fundo do seu coração. Percebeu isto, quando se lembrou que Ele disse que se esconde nas pessoas mais pequeninas e desprezadas, talvez desprezíveis na aparência, sem acolhimento, maltrapilhos e sem carinho. Quem os acolhe, acolhe o seu Mestre e Senhor.

4. Quanto ao homem maltrapilho, ao chegar ao seu destino, se é que ele tinha um destino, mesmo malcheiroso e maltrapilho, talvez tivesse alguém para acolhê-lo, em algum estábulo. Alguém que lhe oferecesse um balde de água para se banhar, e um pedaço de pão velho, para comer com água. Há dias vivia a pão e água e a fraqueza já o devorava... Com certeza, iria dormir feliz, sorrindo secretamente na noite escura, lembrando daquele sorriso da jovem sorridente e bem vestida, anônima, que lhe sorriu, com carinho humano e compreensivo, por considerá-lo humano como os demais. Ela o disse, lembrou: ele é um humano como nós.

O maltrapilho talvez não tivesse nada; nem amor, nem dinheiro, nem roupa lavada, nem um barraco para repousar. Restava-lhe como troféu, uma pedra para recostar a cabeça e um sorriso franco que ele guardava e jamais esqueceria. Baixinho ele repetiu, sozinho quase sussurrante: Bom Natal, menina linda!
Ao fechar os olhos, ainda podia vê-la na imaginação, como um anjo da guarda, esvoaçando, sorridente, leve, na sua pobre choupana, cheia de uma luz estranha, que o fazia feliz.
Já não sabia se estava vivo ou se estava moribundo... Pouco lhe importava...
Agora, ao menos, agora, julgava-se um homem feliz, como se fosse filho de Deus. Recostou sua cabeça na pedra para dormir, e, sorrindo, só soube balbuciar: bom seria se todos os dias fossem dia de Natal.


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