SERMÃO DE SANTO ANTÔNIO
Assim luza a vossa luz diante dos homens:que eles vejam as vossas boas obras
e glorifiquem a vosso Pai que está nos céus (Mt. 5, 16)
Sic luceat lux vestra coram hominibus: ut videant opera vestra bona,
et glorificent Patrem vestrum, qui in caelis est.
I
1. Assim como há dias claros e escuros, assim o será o dia de hoje em comparação do passado.
Hoje faz um ano - porque assim o pedia a ocasião e as circunstâncias da solenidade - preguei aos portugueses as luzes da sua nação. Agora lhes descobrirei a eles, e a todos, às sombras dessas mesmas luzes, para que se veja no que disse, e no que direi, que não foi lisonja ou afetação o louvor. Eu mesmo, e aos mesmos, não calo nem dissimulo o que neles se não deve louvar.
Inventou a matemática aquela famosa pirâmide, a qual, ferida perpendicularmente do sol, de tal maneira recolhe em si todas as luzes, que não deixa lugar à sombra. Mas este milagre da natureza só tem semelhante no maior milagre da graça, Maria sempre imaculada, da qual com tão admirável propriedade como verdade se diz:
Non habet umbra locum.
Nas outras coisas, porém por mais ilustres e ilustradas que sejam, nenhuma luz viram jamais os olhos humanos, tão pura e tão sincera, que não ande junta com sombras.
2. O dia mais claro e resplandecente que amanheceu ao mundo, foi o da Transfiguração de Cristo, porque nele se viu o Monte Tabor alumiado juntamente com dois sóis, um no céu, outro na terra: no céu, com o sol natural, que todos viam; na terra, com o sol do rosto do mesmo Senhor, que só viram os que com eles subiram ao monte:
O seu rosto ficou refulgente como o sol (MI 17, 2).
E neste dia tão esclarecido, e neste monte tão alumiado, poderia também haver sombras? Parece que não, porque a sombra que fizesse um sol, a desfaria o outro. Contudo é certo que aqueles mesmos olhos, que pela parte do céu, e pela da terra, não só estavam alumiados, senão cercados de sóis, no mesmo dia e na mesma hora se viram cobertos de sombras:
Eis que uma lúcida nuvem os cobriu (ibid. 5).
Atravessou-se de repente uma nuvem, que, tomando em si a investidura dos raios de ambos os sóis, se não eclipsou de todos, assombrou uma e outra luz, porque não há neste mundo luz sem sombra.
Estas sombras, pois, que sempre seguem e acompanham a luz, serão hoje a segunda parte daquelas mesmas luzes, que não sei se com tanto aplauso como verdade, inculquei o ano passado aos ouvidos romanos. Então ouviram o que somos; agora ouvirão o que não devêramos ser.
E, posto que para persuadir o bem é necessário maior eloqüência que para declamar ou declarar o mal, também para este triste assunto me é necessária a graça. Ave Maria.
II
Assim brilhe a vossa luz diante dos homens (Mt. 5, 16).
Sic luceat lux vestra coram hominibus.
3. Na primeira parte, e panegírica das duas, em que continuo e divido estes dois sermões, nos mostrou o Evangelho como o nosso santo português foi luz do mundo:
Vós sois a luz do mundo (ibid. 14).
Vos estis lux mundi.
Nesta segunda, que, como já insinuei, será mais declamatória que panegírica, nos dirá o mesmo Evangelho o modo com que luziu esta luz:
Assim brilhe a vossa luz
Sic luceat lux vestra.
Queixava-se o ano passado - se bem vos lembra - a sua e nossa pátria, de se ver deixada de um filho, e tal filho como Antônio. Justificava a sua queixa com o exemplo de José, que se mandou levar morto à terra própria. Agora repete e aperta a mesma queixa com outro exemplo mais vivo, mais doméstico, e mais seu.
Lembra-se Lisboa do seu famoso fundador, Ulisses, tão amante da terra onde nascera, que, sendo natural de Ítaca, o mais áspero e desconhecido lugar de toda a Grécia, antepôs a dureza de seus rochedos às delicias e grandezas mais celebradas do mundo e, depois de o ter visto e rodeado todo, o deixou todo por ela. Tanto assim - diz Homero - que, prometendo a deusa Calipso a Ulisses de lhe conceder a imortalidade, só com a condição que se deixasse ficar e viver nas terras que lhe ofereceria, pôde tanto com ele o natural amor da sua, que não aceitou uma tal promessa, querendo antes - como pondera Cícero, e depois deles o ponderou também S. Crisóstomo - querendo antes morrer na terra própria, que ser imortal na estranha.
À vista, pois, desta formosa medalha do amor da pátria, lançada para memória e exemplo dos primeiros alicerces de sua fundação, e não se podendo jamais esquecer dela, pois a traz impressa no nome, como se não queixaria Lisboa, e como se não tornará a queixar da sequidão, por não dizer crueldade, com que se vê deixada de um filho gerado, nascido e criado, não só no mais alto lugar, mas no mais interior de si mesma, como filho de seu coração?
Só pode dizer contra isto Antônio que deixa a pátria por ir buscar o martírio, e que se mostra menos humano com os de seu próprio sangue, porque o quer derramar todo por Cristo. Mas a esta satisfação responderei depois.
O que agora só digo, sobre o que já disse, é que, assim como Santo Antônio foi obrigado a deixar Portugal para ser português, assim foi necessário que se tirasse dentre os portugueses para ser tão grande homem, e tão grande santo como foi.
Um dos maiores homens que houve no mundo foi Abraão; e a este mandou Deus que saísse da sua pátria e de entre os seus, para ser maior.
O maior santo de todos os santos foi o Filho de Deus; e nem isto bastou para que pudesse obrar na sua pátria as maravilhas com que assombrava as alheias, para que nem os naturais se escandalizem, nem os estranhos estranhem a diferença do que hoje direi. Mas vamos ao Evangelho.
III
Assim brilhe a vossa luz diante dos homens, para que vejam
As vossas boas obras e glorifiquem o vosso pai que está no céu.
Sic luceat lux vestra coram hominibus: ut videant opera vestra bona
et glorificent Patrem vestrum, qui in caelis est (Mt. 5, 16).
4. De tal modo há de luzir a vossa luz diante dos homens, que vejam eles as vossas boas obras, e glorifiquem a Deus. - Isto é o que diz Cristo a Santo Antônio. E isto não o podia fazer um português entre portugueses. A primeira coisa que se lhe encarrega nestas palavras, é que há de luzir a sua luz:
brilhe a vossa luz
Sic luceat lux vestra
Luzir português entre portugueses, e, muito menos, luzir com a sua luz, é coisa muito dificultosa na nossa terra. Com a luz alheia vi eu lá luzir alguns; mas com a própria:
A vossa luz
lux vestra
Nem Santo Antônio, quanto mais os outros. Toda a terra - porque toda é tocada deste vício - tem oposição com a luz. A lua, quem a eclipsa? A terra, porque chegam lá as suas sombras. E o sol, onde não chegam as sombras da terra, quem o escurece e encobre cada hora a nossos olhos? Também a terra.
Levanta o sol com seus raios os vapores da terra, e esses mesmos vapores que ele levantou, condensando-se em nuvens, são os que o não deixam luzir. Tomam em si os resplendores do mesmo sol, e, dourando-se com eles, ou o escurecem de todo, ou no-lo tiram dos olhos.
Preze-se, ou não se preze o sol de escurecer as estrelas do céu, que lá estão os vapores da terra, que o escurecerão a ele.
Sendo esta a condição natural de toda a terra, como grosseira, enfim, rude e opaca, e nascida debaixo das trevas:
A terra era vã e vazia,
e as trevas cobriam a face do abismo (Gên. 1, 2).
Terra erat inanis et vacua,
et tenebrae erant super fatiem abyssi
5. Nenhuma terra há, contudo, entre todas as do mundo, que mais se oponha à luz que a Lusitânia. Outra etimologia lhe dei eu no sermão passado (Ver gol. III, pág. 18); mas, como há vocábulos que admitem muitas derivações, e alguns que significam por antífrase o contrário do que soam, assim o entendo deste nome, posto que tão luzido. O mundo, dizem os gramáticos que se chama mundo.
quia minime mundus
E a morte Parca,
quia nemini parcit.
E assim como o mundo se chama mundo, porque é imundo, e a morte se chama Parca, porque a ninguém perdoa, assim a nossa terra se pode chamar Lusitânia, porque a ninguém deixa luzir.
Não é Santo Isidoro, nem Marco Varro o autor desta funesta etimologia, senão a mesma natureza e o mesmo céu, com o curso e ocaso de suas luzes.
A terra mais ocidental de todas é a Lusitânia. E por que se chama Ocidente aquela parte do mundo? Porventura, porque vivem ali menos, ou morrem mais os homens? Não, senão porque ali vão morrer, ali acabam, ali se sepultam e se escondem todas as luzes do firmamento.
Sai no Oriente o sol com o dia coroado de raios, como rei e fonte da luz; sai a lua e as estrelas com a noite, como tochas acesas e cintilantes, contra a escuridade das trevas; sobem por sua ordem ao zênite; dão volta ao globo do mundo, resplandecendo sempre; e alumiando terras e mares, mas em chegando aos horizontes da Lusitânia, ali se afogam os raios, ali se sepultam os resplendores, ali desaparece e perece toda aquela pompa de luzes.
6. E se isto sucede aos lumes celestes e imortais, que nos lastimamos, senhores, de ler os mesmos exemplos nas nossas histórias? Que foi um Afonso de Albuquerque no Oriente? Que foi um Duarte Pacheco? Que foi um D. João de Castro? Que foi um Nuno da Cunha, e tantos outros heróis famosos, senão uns astros e planetas lucidíssimos, que, assim como alumiaram com estupendo resplendor aquele glorioso século, assim escureceram todos os passados?
Cada um era na gravidade do aspecto um Saturno, no valor militar um Marte, na prudência e diligência um Mercúrio, na altiveza e magnanimidade um Júpiter, na fé e na religião, e no zelo de a propagar e estender entre aquelas vastíssimas gentilidades, um sol.
Mas, depois de voarem nas asas da fama, por todo o mundo, estes astros, ou indigites da nossa nação, onde foram parar, quando chegaram a ela? Um vereis privado com infâmia do governo; outro preso e morto em um hospital; outro retirado e mudo em um deserto; e o melhor livrado de todos, o que se mandou sepultar nas ondas do Oceano, encomendando aos ventos levassem à sua pátria as últimas vozes, com que dela se despedia:
Pátria ingrata, não possuirás os meus ossos!
Ingrata patria, non possidebis ossa mea
Vede agora se tinha razão para dizer, que é natureza ou má condição da nossa Lusitânia não poder consentir que luzam os que nascem nela. E vede também se podia Santo Antônio deixar de deixar a pátria, sendo filho de uma terra onde se não consente o luzir, e tendo-lhe mandado Cristo que luzisse:
Brilhe a vossa luz
Sic luceat lux vestra.
7. Eu não direi que S. João, no seu Apocalipse, levantou figura aos que nascem em Portugal; mas há muitos dias que naquelas suas visões de Patmos tenho observado uma notável pintura, na qual estão retratadas, ao vivo, as fortunas ou influências deste fatal nascimento:
Apareceu um grande sinal no céu: uma mulher vestida do sol, que tinha a lua debaixo de seus pés, e uma coroa de doze estrelas sobre a sua cabeça; e, estando prenhada, clamava com dores de parto. E foi visto outro sinal no céu; apareceu um grande dragão; e o dragão parou diante da mulher que estava para parir, a fim de tragar ao seu filho depois que ela o tivesse dado à luz (Apc.12,1. 2 ss)[1].
Esta é, em suma, a história da visão, na qual diz o evangelista que viu primeiramente uma mulher vestida do sol, coroada de estrelas, e com a lua debaixo dos pés, a qual estava na hora do parto, e clamava de dor. Logo apareceu diante desta mulher um grande dragão, o qual, com a boca aberta, estava esperando que saísse à luz o filho, para lho tragar e comer, tanto que nascesse. Infeliz menino, antes destinado às unhas e dentes do dragão, que nascido!
Mas que dragão, que mulher, e que filho é este?
O enigma é tão claro, que pelas figuras sem letras se pode entender. A mulher vestida de luzes, o mesmo nome diz que é a Lusitânia; as luzes são as que ouvistes o ano passado; e o ter a lua debaixo dos pés é a maior expressão da mesma figura, porque a Lusitânia foi a primeira em toda Espanha que sacudiu o jugo dos sarracenos, e tantas vezes então e depois meteu debaixo dos pés as luas maometanas. O parto, que a fazia bradar, são os filhos ou partos da Lusitânia, não todos, senão aqueles com que ela dá brado no mundo. E o dragão, finalmente, já preparado e armado para tragar esses filhos, é aquele mesmo dragão que Portugal tem por timbre das suas armas, porque é timbre da nossa nação, tanto que sai à luz quem pode luzir, tragá-lo logo, para que não luza.
De maneira que a mulher e o dragão, em tão diferentes figuras, uma humana, outra sem humanidade, ambas vêm a ser a mesma coisa, porque, como mulher, pare os filhos, e, como dragão, os traga depois de nascidos.
8. Os exploradores que foram descobrir e informar-se da Terra de Promissão, de tal maneira a descreveram, que parece definiram a nossa. Três coisas disseram, todas grandes e notáveis; mas a terceira assombrosa e terrível, e para todos fugirem de tal terra. Disseram que era tão fértil, e de clima tão benigno, que os rios manavam mel e leite:
Fomos à terra a que tu nos enviaste,
a qual na verdade mana leite e mel (Num. 13, 28).
Venimus in terram, ad quam misisti nos,
quae revera fluit lacte et melle
Disseram mais, que viram nela homens da geração dos gigantes:
Ali vimos a raça de Enac (ibid. 29).
Stirpem Enac vidimus ibi
E sobre estas duas prerrogativas tão singulares, a terceira, que acrescentaram, foi que era uma terra que comia e tragava os seus naturais:
A terra que fomos ver devora os seus habitantes (ibid. 33).
Terra, quam lustravimus, devorat habitatores suos
Julgai se quadra bem toda a definição à nossa terra.
É tal na benignidade dos ares, na fertilidade dos campos, na afluência dos rios, que, chamando-se antigamente Lethes o que hoje se chama Lima, é opinião de muitos autores que o temperamento e delícias da Lusitânia foram as que deram motivo à fábula dos Campos Elísios.
Que na mesma terra se conserve a geração dos gigantes, isto é, de homens maiores que os outros homens, também o não pode negar quem tiver lido as antigüidades do mundo. Basta, por exemplo, serem os lusitanos os que com o seu rei Sículo, filho de Luso, debelaram em Sicília os ciclopes, e deixaram eternizada esta vitória no mesmo nome de seus habitadores, os quais desde então se chamaram sículos.
Mas que importam estas excelências, e outras que se puderam dizer sem lisonja, se o clima ou constelação natural da mesma terra é tão alheia de humanidade, que come seus próprios filhos?
Que importa que, como mãe, seja tão felizmente fecunda nos partos, que os gere de tão eminente estatura, se, como dragão peçonhento, com raiva de os ver tão grandes, os morde, os rói, os abocanha, os atassalha, e não descansa até os engolir e devorar de todo:
Esta terra devora os próprios filhos
Terra devorat habitatores suos?
IV
9. Agora sim, que já posso responder a Santo Antônio, e confutar a sua escusa. De maneira, meu santo, que deixais Portugal, e vos embarcais para África, porque dizeis, que ides buscar o martírio? Antes, por isso mesmo vós não deveis sair da vossa pátria.
Não tendes vós já encerrado no peito aquele grande tesouro de sabedoria e eloqüência, com que depois haveis de esclarecer e assombrar o mundo, e agora a vossa modéstia e humildade encobre e dissimula, e, quase contra o conselho deste mesmo Evangelho, tem escondido debaixo do meio alqueire:
Não se acende uma luz
para ocultá-la debaixo do alqueire
Ne que enim accendunt lucernam,
et ponunt eam sub modio? (Mt. 5,15).
Escusado é logo ir buscar o martírio incerto, por mar em terras estranhas, se o tendes mais breve e mais seguro na mesma (terra) onde nascestes.
Amanheçam em Coimbra os resplendores dessa Teologia, que depois há de ter a primeira cadeira na segunda religião de que tendes tomado o hábito; passai com os ecos dessa fama a Lisboa, e começai a levar após vós a corte, com a eloquência mais que humana dessa língua imortal, e eu vos prometo - não tanto que ela falar, senão depois que for falada - que não faltem naturais vossos que vos façam mártir.
Não vos asseguro rodas de navalhas, nem bois de metal, porque lá não se martiriza com tanto engenho; mas, se vos contentais com martírio mais aparelhado, e mais vulgar, de serdes logo um S. Sebastião, não o duvideis.
Todos os raios que de si despedir a vossa luz, se hão de converter em setas que se empreguem em vós.
O vosso nome há de ser o aplauso de todas as vozes, e o vosso corpo o alvo de todas as setas.
Não vos há de valer serdes filho de S. Francisco, uma vez que mostrardes que sois geração de gigante:
Vimos aí homens da estirpe do gigante Enac
Stirpem Enac vidimus ibi.
10. Apareceu Saul no meio do povo de Israel, em ocasião que estava junto em cortes, e diz o texto sagrado que era de tão alta e agigantada estatura, que do ombro para cima excedia a todos:
Ele se pôs no meio do povo,
e viu-se que era mais alto do que todo o povo do ombro para cima
Stetitque in medio populi, et altior fuit universo
populo ab humero et sursum. (1 Rs. 10, 23).
E vós, Saul, sois tão grande na terra onde nascestes, que os maiores, quando muito, vos dão pelo ombro, e com toda a cabeça sobrepujais a todos? Ora, esperai pelos efeitos dessa vossa tão bizarra estatura, e vereis a fortuna que com ela vos aguarda.
Deu-se a fatal batalha dos campos de Gelboé, e, posto que na confusão dos grandes exércitos, quando se combate, apenas se conhece distinção de homens a homens, como Saul avultava tanto entre a multidão, sobre ele carregou todo o peso da batalha, e nele se empregaram todas as setas:
Todo o peso do combate caiu sobre Saul,
e foi gravemente ferido pelos frecheiros
Totum pondus praelii versum est in Saul:
et vulneratus est vehementer a sagittariis (1 Rs. 31, 3).
11. Os sete montes daquela cidade, em um dos quais nasceu Santo Antônio, todos são montes de Gelboé. Ali está encantada a fatalidade dos que fez a natureza ou a fortuna maiores que os outros.
Contra eles se armam as batalhas, contra eles se tiram as setas, e sobre eles se descarrega todo o peso da guerra, porque a inveja, como filha primogênita da soberba, pesa para cima, e todos seus tiros se assestam contra o mais alto.
Não debalde domina sobre Portugal o sagitário, porque este é o signo em que lá nascem todos os que são apontados com o dedo, para que contra eles se apontem as setas.
Escusadamente vai logo provocar as setas dos arcos turquescos a África, quem as tinha tão aparelhadas na pátria, e tão certas na sua própria grandeza.
Essa foi, se eu me não engano, a providência daquela inopinada enfermidade, com que, apenas tinha posto os pés Santo Antônio, nas praias africanas, quando foi outra vez obrigado a se embarcar para os ares pátrios, como se lhe dissera Deus: - Vens buscar o martírio a Berbéria, deixando Portugal e Lisboa? Torna, torna para donde vieste, que também lá há Marrocos e Tituões. Para a terra de seu nascimento mandou Deus tornar a Adão:
Na terra de que foste tomado
In terram de qua sumptus es (Gên. 3, 19).
Não porque aquela terra da sua pátria fosse mais sadia, senão para que nela morresse com dobrada dor, em pena de ter comido da árvore da ciência.
Não havia outra terra para onde o desterrar, senão para aquela mesma em que nascera? A sua pátria há de ser o seu desterro? O tirá-lo dela foi o maior favor, e o tornar para ela há de ser castigo?
Sim, porque, sendo aquela terra tão feliz no primeiro parto, que gerou o primeiro homem do mundo, foi tão maldita no segundo, que não produziu mais que abrolhos e espinhos, contra esse mesmo homem que dela nascera:
Ela te produzirá espinhos e abrolhos
Spinas et tribulos germinabit tibi (ibid. 18).
12. Deixe-se ficar Antônio, no Campo Damasceno da sua pátria; e, se já a tem deixado, torne para ela, que nela achará, se se souber o que sabe, quanto ia buscar tão longe.
Quando Santo Antônio, depois de comer da árvore da sabedoria, em tão profundos estudos, se escondeu como Adão, bem sabia que na sua pátria também é delito o muito saber, posto que não seja por desobediência, mas por mais obedecer e servir a Deus.
Manifeste, pois, à sua terra o que sabe, deixe luzir - pois assim lho manda Cristo - a sua luz, e experimentará logo que esta mesma terra, que o fez o primeiro homem, em lugar de lhe tecer coroas de louro, se arma de espinhos e abrolhos, com que o martirize:
Spinas et tribulos geminabit tibi.
V
13. Mas, como Deus não queria de Antônio o seu martírio, a nova providência de uma furiosa tempestade o derrotou da pátria, para onde tornava, e o levou a tomar porto em Itália. E por quê, ou para quê? Porque Deus lhe tinha mandado que luzisse a sua luz diante dos homens:
Brilhe vossa luz diante dos homens
Sic luceat lux vestra coram hominibus.
Para a sua luz luzir diante dos homens, era necessário que o mesmo Deus o levasse a terra onde houvesse homens, diante dos quais se pudesse luzir.
Oh! terra verdadeiramente bendita, pátria da verdade, asilo da razão, metrópole da justiça, que não debalde te escolheu Deus para colocar em ti o seu eterno sólio!
Quase estou para dizer que aquela figura do Apocalipse, que expliquei enigmaticamente, não só é, ou foi enigma, senão história ou profecia literal deste sucesso de Santo Antônio.
Dissemos que a mulher vestida de luzes era a Lusitânia; dissemos que o dragão, que estava esperando, com a boca aberta, para tragar o parto que dela nascesse, era o timbre das suas armas, e a desumanidade natural com que trata seus filhos. Agora vede como o filho, que então nasceu e escapou dos dentes do dragão, foi Santo Antônio:
E pariu - continua o texto - um filho varão, o qual havia de reger todas as gentes, com vara de ferro, e logo foi arrebatado da presença da mãe e do dragão, e levado a Deus, e ao seu trono.
Et peperit filium masculum, qui recturus erat omnes gentes in virga ferrea:
et raptus est filius ejus ad Deus, et ad thronum ejus (Ap.. 12, 5):
Primeiro que tudo, não faça dúvida dizer o texto que este filho havia de reger as gentes com vara de ferro, porque é propriedade dos termos, ou títulos, com que na Escritura se descrevem os que Deus elege e constitui - como elegeu e constituiu a Santo Antônio - para pregadores universais do mundo:
Eu, porém, fui por ele constituído rei sobre Sião,
seu monte santo, para promulgar o seu decreto:
Tu os governarás com uma vara de ferro
e quebrá-los-ás como um vaso de oleiro (SI. 2.6.9).
Ego autem constitutus sum rex ah eo super Sion, montem sanctum ejus, praedicans praeceptum ejus: Reges eos in virga ferrea, et tamquam vas figuli confringes eos
Assim regia e encaminhava Santo Antônio, com a lei e preceitos divinos, todas as gentes a que pregava. E assim confundia e quebrantava os rebeldes, com vara e eficácia propriamente de ferro, que por isso foi chamado por excelência Martelo das Heresias:
Perpetuus haereticorum malleus.
Este filho, pois, prodigioso parto da Lusitânia, que Deus tinha destinado a tão gloriosos fins, para o livrar assim da mesma mãe, como das unhas do dragão, de que não podia escapar, depois de sair à luz do mundo, diz o texto que foi arrebatado com violência:
raptus est
Porque o arrebatou do caminho que levava para a pátria a violência da tempestade. E diz mais, que foi levado a Deus, e ao seu trono:
ad Deus, et ad thronum ejus
porque a mesma violência dos ventos o levou a Itália e a Roma, onde Deus tem seu trono na terra.
Já agora, meu santo, pode luzir a vossa luz diante dos homens:
Sic luceat lux vestra coram ominibus
porque já estais em terra de homens, diante dos quais se pode luzir. Tanto vos era necessária a ausência de uns como a presença dos outros.
Já os mesmos Sumos Pontífices vos chamam Arca do Testamento; já as vossas vozes são ouvidas como oráculos; já as vossas razões e sentenças são recebidas e veneradas como divinas.
E não porque vós hoje sejais outro do que dantes éreis, nem outros os documentos da vossa doutrina, mas porque tanto vai de lugar a lugar, e de homens a homens:
Coram hominibus.
15. Esta felicidade de achar Santo Antônio homens diante dos quais luzisse a sua luz, como o Senhor lhe mandava, foi, na minha opinião, uma das maiores graças que o mesmo Senhor lhe concedeu, porque, sendo muito poucos no mundo os homens que podem luzir, aqueles diante dos quais se possa luzir ainda são muito menos.
Todos os dias ouvimos, no Evangelho de S. João, uma coisa em que eu não acabo de reparar:
Houve um homem, enviado por Deus, cujo nome era Joã.o
Ele veio como testemunho, para dar testemunho da luz.
Fuit homo missus a Deo, cui nomem erat Joannes: hic venit in testimonium, ut testimonium perhiberet de lumine (Jo. 1, 6 s):
Houve - diz - naquele tempo, um homem, mandado por Deus, o qual veio para ser testemunha, e testemunhar da luz. - A luz não há mister testemunhas, porque ela por si mesma, e sem mais prova, demonstra o que é. Quanto mais que a luz de que falava o evangelista - como ele mesmo acabava de dizer - era a luz verdadeira, e fonte de toda a luz, Cristo, que alumia todos os homens:
Era a luz verdadeira, que alumia
a todo o homem que vem a este mundo (Jo. l, 9).
Erat lux vera, quae illuminat omnem hominem venientem in hunc mundum
Pois, se todos os homens viam essa mesma luz, por que foi necessário que mandasse Deus um homem, como o Batista, para que testemunhasse dela? Porque tão raros são, no mundo os homens, que possam testemunhar da luz. Poder ver a luz, e ser alumiado dela, é (natural a) todos os homens:
Ela ilumina todos os homens
Quae illuminat omnem hominem.
Mas fazer verdadeiro conceito dessa mesma luz, e dizer e testemunhar o que ela é:
Para que dê testemunho da luz.
Ut testimonium perhiberet de lumine
para isso apenas se acha no mundo um homem, e esse mandado por Deus:
Houve um homem enviado por Deus
Fuit homo missus a Deo.
16. Testemunhar o Batista de Cristo, como discretamente notou S. Gregório Nazianzeno, era alumiar o sol com uma candeia. E, sendo isto uma coisa que não só parece supérflua, mas ridícula, teve necessidade o sol desta candeia, para que entre os homens houvesse um que testemunhasse da sua luz como merecia:
Para dar testeminho da Luz.
Ut testimonium perhiberet de lumine.
E se quisermos examinar a causa deste efeito, tão contrário à natureza da mesma luz, acharemos que todo procede, não da luz, senão dos homens. O mesmo S. João o disse:
A Luz veio ao mundo,
mas os homens preferiram as trevas à Luz.
Lux venit in mundum, et dilexerunt homines
magis tenebras quam lucem (Jo. 3, 19):
Veio a luz ao mundo, e os homens - quem tal havia de imaginar? - amaram mais as trevas, que a luz. - Quantas vezes se vê isto no mundo, e eu o tenho visto? Ver os que luzem, é para rir; e ver os que não luzem, para chorar:
Amaram mais as trevas do que a Luz.
Dilexerunt magis tenebras quam lucem.
As trevas amadas, veneradas, e aplaudidas, como se foram luz; e a luz aborrecida, desestimada e perseguida, como se fora trevas. Tal é, e tal costuma ser o juízo dos homens, ou seja por ignorância, ou por malícia. Mas que remédio terá a luz, para não ser aborrecida de tal gente? Se é aborrecida porque veio do mundo:
A Luz veio ao mundo
Lux venit in mundum
vá-se do mundo, e não será aborrecida.
Assim o cuidava eu, e assim creio que bastará para com alguns homens, mas não para com todos.
17. Diz Plínio que os homens do Monte Atlante todos os dias amaldiçoam o sol duas vezes, uma quando nasce, e outra quando se põe:
Solem orientem occidentemque dira imprecatione intuentur
(Plin. lib. 5, c. 8).
O Monte Atlante é aquele tão bem opinado entre os homens, que dele se diz e celebra que sustenta o céu com seus ombros, e que o mesmo céu havia de cair, se aquela forte coluna o não sustentara. Pois, se com tanto trabalho e tanto zelo se sustenta neste monte o céu para que não caia, a melhor jóia e maior lustre do mesmo céu, que é o sol, como é tão aborrecido e anatematizado no mesmo monte?
Dir-me-eis que tudo isto é fábula e mentira, e que a verdadeira razão deste ódio é porque os moradores do Monte Atlante são os etíopes, mais adustos, como mais vizinhos, ou menos defendidos do sol, e por isso aborrecem tanto a luz dos seus raios, porque aos outros homens alumia, e a eles queima.
Mas, se isto assim é, como é, aborreçam os do Monte Atlante ao sol quando nasce, e não quando se põe. Se o recebem com maldições quando vem, dêem lhe graças e louvores quando se vai. Mas quando vem e aparece diante destes homens, aborrecido na presença, e quando se vai, e os deixa, também aborrecido e perseguido na ausência:
Orientem occidentemque?
Sim, porque o sol, ainda que se vai, vai para tornar:
A sua saída é desde uma extremidade do céu,
e corre até à outra extremidade dele.
A summo caelo egressio ejus,
et occursus ejus usque ad summum ejus (SI. 18, 7).
Vá-se pois o sol, e desapareça duma vez para sempre, e logo nem os do Atlante terão quem os queime, nem o sol quem o injurie.
VI
18. Isto é que fez Santo Antônio: não só se foi da sua terra, senão para sempre, e para nunca mais tornar a ela. Nem o santo podia deixar de o fazer assim, suposto o preceito divino, e o fim e o intento dele.
O fim e intento do preceito de Cristo era:
Para que vejam as vossas boas obras
Ut videant opera vestra bona:
que de tal maneira luzisse diante dos homens, que eles vissem suas obras boas — e nada disto podia ser, se Santo Antônio ficasse na pátria, e quisesse luzir nela. E por que razão, ou sem-razão? Por tantas quantas são as palavras do mesmo preceito:
Para que vejam as vossas boas obras
Ut videant opera vestra bona
Ele havia de fazer as obras:
opera vestra;
os homens haviam-nas de ver:
Ut videant;
e essas obras, vistas, haviam de ser boas: bona - e nenhuma destas coisas podia Santo Antônio conseguir entre os da sua pátria, por outras tantas razões. Primeira, porque não havia de poder fazer essas obras; segunda, porque, ainda que as fizesse, não as haviam de ver os homens; terceira, porque, ainda que as fizesse, e eles as vissem, não haviam de ser boas:
Para que vejam as vossas boas obras
Ut videant opera vestra bona.
Dai-me agora atenção.
19. Primeiramente digo que aquelas obras que o Evangelho recomenda a Santo Antônio, ele não as havia de fazer, nem as podia fazer na sua pátria, e não por falta de virtude no santo, senão por defeito ou esterilidade natural da terra em que nasceu.
Não é coisa nova na natureza haver terras que são fecundas para as plantas, e estéreis para os frutos. São fecundas para as plantas, porque elas produzem as árvores; e são estéreis para os frutos, porque essas mesmas árvores não podem produzir os frutos enquanto estão nelas.
Por esta razão e experiência inventou a agricultura o remédio de transplantar, arrancando ou desterrando as plantas da terra onde nasceram, e passando-as a outras, onde frutifiquem. Isto é o que fez ou sucedeu a Santo Antônio, do qual parece que profetizou Davi, quando no texto hebreu, em que falava, disse:
Será como a árvore que foi transplantada,
e que dará o seu fruto (Sl. 1, 3).
Erit tanquam lignum quod transplantatum est, et fructum suum dabit
Os milagres e obras prodigiosas com que Santo Antônio admirava e convertia o mundo em Itália e França, eram frutos daquela generosa planta, mas transplantada:
Como árvore que foi transplantada.
Tanquam lignum quod transplantatum est.
Porque se Deus - que também é agricultor:
Meu Pai é agricultor (Jo 15, 1).
Pater meus agrícola est
o deixara ficar na terra onde nasceu, nenhuma dessas maravilhas havia de obrar, nenhum desses frutos havia de produzir, não por defeito da planta, senão por vicio da terra.
É a nossa terra - por que se não queixe de que lhe digo injúrias - como a pátria de Cristo. Obrava Cristo, Senhor nosso, por toda a parte aquela multidão de milagres, tantos, tão contínuos e tão estupendos, como sabemos; mas tanto que chegava à sua pátria- assim como o Maná cessou, tanto que chegou à Terra da Promissão - assim cessava, e se suspendia, e ficava totalmente parada aquela corrente celestial e benéfica de maravilhas, com que socorria, remediava e admirava a todos. S. Marcos chegou a dizer que Cristo na sua pátria não podia fazer milagre algum:
Foi para a sua pátria, e não podia fazer ali milagre algum.
Abiit in patriam suam, et non poterat ibi virtutem ullam facere(Mc 6, 1. 5)
Ainda na boca de um evangelista parece duvidosa esta proposição. Cristo, enquanto Deus, não era onipotente por natureza, e enquanto homem, não era também onipotente por comunicação e por graça? Assim o crê e confessa a nossa fé.
Pois, como é possível que um homem-Deus, e por um e por outro modo onipotente, não pudesse fazer milagres na sua pátria?
Aqui vereis que coisa é a pátria. E se tanta resistência e contradição experimentou a onipotência ordinária, que seria a delegada de Santo Antônio?
21. Respondeu Cristo a este escândalo com aquele provérbio universal:
Não há profeta sem honra senão na sua pátria.
Non est propheta sinahonore, nisi in patria: sua (Mt 13, 57; Mc 6, 4) :
De sorte que toda esta repugnância ou todo este impossível topava na honra. E como é vício natural da pátria não sofrer nem poder ver mais honrado a quem nasceu nela, porque a pátria não podia sofrer a honra de Cristo, não podia Cristo na pátria fazer os milagres.
Para os milagres honrarem a Cristo na sua pátria, era necessário que os da mesma pátria cressem que eram verdadeiros milagres. Mas eles, diz o evangelista, eram tão duros, e tão incrédulos, que não criam que um homem seu natural pudesse fazer obras sobrenaturais, e por isso o Senhor as não podia fazer:
Não podia fazer ali milagre algum,
e se admirava da incredulidade deles (Mc 6, 5 s).
Non poterat ibi ullam virtutem facere,
et mirabatur propter incredulitatem eorum
Reparemos muito nesta última cláusula, e na conexão dela com a antecedente. Diz o evangelista que não podia Cristo fazer milagres na sua pátria, e que o mesmo Senhor se admirava muito de que a incredulidade dos seus naturais fosse a causa de não poder fazer os milagres:
Admirava-se por causa da sua incredulidade
Et mirabatur propter incredulitatem eorum.
Pois, por que eles não criam que Cristo pudesse, por isso Cristo não podia? Sim, e o mesmo Mestre divino declarou o segredo deste impossível, noutra ocasião.
Pediu-lhe um pai a saúde milagrosa para um filhe, dizendo;
Si quid potes, adjuva nos (Mc 9, 21)
Se é que podeis, favorecei-me a mim e a este filho - E o Senhor respondeu:
Si potes credere, omnia possibilia sunt credenti (ibid. 22)
Se tu podes crer tudo é possível a quem crê.
Notai que não disse: Tudo me é possível a mim, porque sou onipotente - senão: Tudo te é possível a ti, se crês que eu posso. E a razão é porque, segundo a disposição condicional da providência divina, para se fazer um milagre são necessárias duas possibilidades: uma ativa, da parte de Deus, que faz o milagre, que é a onipotência; e outra passiva; da parte do homem, a quem se faz, que é a credulidade. E como nos naturais de Cristo faltava esta segunda possibilidade, e pela inveja natural, que nasce com os que nascem na mesma pátria, não podiam crer - nem querer - que Cristo nascido entre eles fizesse milagres, por isso o mesmo Senhor não pedia na sua terra o que podia em todas:
Non poterat ibi.
22. Oh! pátria, tão naturalmente amada como naturalmente incrédula! Que filhos tão grandes e tão ilustres terias, se assim como nascem de ti, não nascera juntamente de ti, e com eles, a inveja que os afoga no mesmo nascimento, e os não deixa luzir nem crescer?
Aquele trigo malogrado do Evangelho, que caiu entre espinhos, diz o texto que os espinhos que juntamente nasceram com ele o afogaram:
Et simul exortae spinae suffocaverunt illud (Lc 8, 7) .
Note-se muito simul exortae (nasceram juntos)
Não há coisa que mais pique, nem de que mais se piquem os naturais, que da emulação inveja.
Estes são os espinhos que afogam logo, desde seu nascimento, os que nascem na mesma terra, estes são os que haviam de afogar na nossa a Santo Antônio, para que não obrasse fora dela o que obrou, nem obraria se não fugisse dela.
Mas que muito que houvesse de suceder a Santo Antônio com os da sua, o que sucedeu ao mesmo Deus depois que teve pátria?
Impugnavam e contradiziam os de Nazaré, pátria de Cristo, a fama das maravilhas do Senhor, e houve um que se atreveu a lhe dizer em presença:
Tudo quanto ouvimos que fazes em Cafarnaum,
faze-o aqui, na tua Pátria.
Quanta audivimus facta in Capharnaum,
fac et hic in pátria tua (Lc 4, 23):
Isto que ouvimos de vossas maravilhas ao longe, não o veremos de perto? Desses milagres, tantos e tão famosos, que fazeis nas outras partes, não fareis também algum aqui na vossa pátria?
Não, e por isso mesmo. Na terra onde nascem os milagrosos, não nascem nem se dão os milagres. O que só não pode estorvar a pátria, é que cheguem lá os ecos da fama, e que de boa ou má vontade sejam ouvidos:
Tudo quanto ouvimos.
Quanta audivimus.
Assim chegavam e se ouviam de longe em Portugal as maravilhas do seu grande português; e, posto que não sei se eram tão cridas e aplaudidas então como mereciam, o que só posso afirmar sem escrúpulo, é que não seriam tão bem ouvidas na terra própria como ele era ouvido nas estranhas. Ouviam que quando pregava Antônio cessavam todos os outros exercícios mecânicos, civis e políticos, porque os lavradores deixavam os arados, os mercadores as tendas, os ministros os tribunais, os cortesãos os palácios e os teatros:
Tudo quanto ouvimos.
Quanta audivimus!
Ouviam que se despovoavam as cidades, e que, não cabendo a multidão imensa nos templos, era obrigado a pregar nos campos, e que, pregando em uma só língua, sendo de diferentes nações os ouvintes, todos o entendiam como se falara na sua:
Tudo quanto ouvimos.
Quanta audivimus!
Ouviam que, vestido de burel, e descalço, ia cercado de guardas, e defendido de homens armados, os quais mal podiam resistir ao peso e tumulto das gentes, que concorriam a lhe beijar o hábito e roubar algum fio dele, como preciosa relíquia:
Tudo quanto ouvimos.
Quanta audivimus!
Ouviam que, se o não queriam ouvir os hereges obstinados, para confundir sua dureza e rebeldia, ia pregar aos peixes, e que eles, chamados da sua voz, concorriam de todo o mar em cardumes, grandes e pequenos, e, postos por sua ordem com as cabeças fora da água, como se tiveram o uso de razão, que faltava aos homens, escutavam atentos o que Santo Antônio lhes dizia, e assentiam a tudo:
Tudo quanto ouvimos.
Quanta audivimus!
Ouviam que, armando-se uma horrenda tempestade sobre o povo inumerável, que no campo descoberto ouvia ao santo, ele os assegurou que ninguém se inquietasse ou movesse, e, voltado para o céu escuro e medonho, com o oceano, somente de uma mão emudeceu os trovões, apagou os relâmpagos e suspendeu as nuvens, as quais não tiveram licença para chover, senão depois de recolhidos todos a suas casas:
Tudo quanto ouvimos.
Quanta audivimus!
Ouviram que, encomendando-se a Antônio, os cegos viam, os surdes ouviam, os mancos andavam, os mudos falavam, os enfermos de todas as enfermidades saravam, e até os mortos, invocado o santo por boca dos vivos, ressuscitavam, sendo muito mais admiráveis ressurreições as de infinitos pecadores, que, mortos e sepultados em todo o gênero de vícios, por força da palavra divina, pronunciada pela boca de Antônio, se convertiam _à penitência, e restituíam à graça:
Tudo quanto ouvimos.
Quanta audivimus!
Todas estas e outras muitas maravilhas se ouviam em Portugal e Lisboa, onde as levava a fama; mas que o mesmo santo, que tantos e tão prodigiosos milagres obrava nas terras estranhas, os fizesse também na sua:
Faz isto aqui, na tua Pátria
Fac hic in patria tua
Isso não, porque não podia ser:
Não poderia fazer ali nenhum milagre.
Non poterat ibi virtutem ululam facere.
24. Vejo, contudo, que todos estão reclamando contra esta doutrina, e argumentando contra a verdade dela, não menos que demonstrativamente, e com experiência. Porque sabemos que Santo Antônio foi a Lisboa para livrar a seu pai, condenado falsamente por um homicídio, e que em presença de todo o povo, e ministros da justiça, que o levavam ao suplício, ressuscitou o mesmo morto; e que este declarou a verdade, e depôs juridicamente que não era aquele homem que o matara.
Pois, se Santo Antônio fez este estupendo milagre em Lisboa, e dentro dos muros dela, e no adro da mesma Sé, junto às casas onde mesmo santo nasceu, como digo eu, nem posso provar com verdade, que Santo Antônio não havia nem podia fazer milagres na sua pátria?
Agradeço-vos muito a instância, que é bem apertada, e também espero que me haveis de agradecer a solução. Respondo e concedo que Santo Antônio fez este milagre, também outro semelhante em Lisboa; mas o Santo Antônio que fez os milagres em Lisboa, não era, o nascido em Lisboa. Ora vede. Quando um santo aparece realmente em alguma terra distante, pode ser por um de dois modos: ou levado lá, como levou o anjo ao profeta Habacuc a Babilônia, ou reproduzindo-o Deus, e ficando onde estava, como Cristo está no céu, e juntamente no Sacramento.
Deste segundo modo é que fez Santo Antônio os milagres em Lisboa, não levado, senão reproduzido, porque no mesmo tempo ficou e estava em Itália, pregando e inclinado sobre o púlpito, como diz a história.
E como o santo que fez os milagres era Santo Antônio reproduzido, não era Santo Antônio nascido em Lisboa. O Santo Antônio nascido em Lisboa, esse ficou cá em Itália. O que obrou lá o milagre, era o mesmo Santo Antônio, sim, mas reproduzido e nascido de novo nas mãos da onipotência.
De sorte que, para Santo Antônio fazer milagres em Lisboa, foi necessário que Deus lhe desse outro segundo e novo nascimento, e assim segunda vez nascido fizesse o milagre na terra onde não nascera.
Quando chegou aos ouvidos de el-rei Herodes a fama dos grandes milagres que Cristo obrava, entrou o rei em um pensamento notável. Presumiu e disse que aquele homem não era Cristo, senão o Batista ressuscitado, e que por isso fazia tantos milagres:
João Batista ressuscitou de entre os mortos,
e por isso obram nele tantos milagres (ML 14, 2).
Joannes Baptista surrexit a mortuis,
et ideo virtutes operantur in eo
Consta do Evangelho que o Batista não fêz milagre algum em sua vida:
João não fez milagre algum (Jo 10, 41)
Joannes nullum signum fecit.
Pois, se o Batista não fez milagres enquanto vivo, donde se colhe que os faria depois ressuscitado? Porque a ressurreição é um segundo nascimento do mesmo homem, que por isso se chama regeneração; e a graça que não teve o maior dos nascidos no primeiro nascimento, era verossímil que a tivesse no segundo.
Isto pois que em S. João reproduzido verossímil, em Santo Antônio foi certo. Não porque o segundo nascimento lhe desse a virtude de fazer milagres, que já a tinha, mas porque lhe tirou o impedimento de ser a terra em que nascera; e como Lisboa não era pátria de Antônio assim reproduzido, por isso pôde fazer milagres em Lisboa, o que de outro modo não podia:
Não poderia fazer ali nenhum milagre
Non poterat ibi virtutem ullam facere.
VII
25. Mas, dado que Santo Antônio fizesse milagres na sua pátria, a segunda coisa que prometi, e digo, é que os homens da mesma terra não os haviam de ver.
O que Cristo encomenda a Santo Antônio no nosso texto, é que a sua luz resplandeça de tal modo diante dos homens, que eles vejam as suas obras ilustres e gloriosas:
Assim luza a vossa luz diante dos homens,
que eles vejam as vossas boas obras.
Sic luceat lux vestra coram hominibus,
ut videant opera vestra bona (Mt. 5, 16).
E estas obras ilustres e gloriosas, se o santo as fizesse na sua pátria, como supomos, parece que não podiam os homens deixar de as ver. O não as verem só podia ser, ou por falta das obras, ou por falta da luz.
Assim o notou Santo Agostinho, dando a razão por que não vemos a Deus, estando ele presente em toda a parte:
Est quod videas, sed non est unde videas.
Para ver é necessário objeto e luz: o objeto, que é Deus, sempre o temos presente; a luz, com que ele se pode ver, essa é a que nos falta, e por isso o não vemos.
Mas no nosso caso nem faltavam o objeto, que são obras:
As vossas boas obras
Opera vestra bona
Nem faltava luz, que era a mesma de quem as obrava:
Assim brilhe a vossa Luz.
Sic luceat lux vestra.
Logo, como pode ser que os homens as não vissem? Digo que sim pode ser, e que assim havia de ser, não por falta das obras, nem por falta de luz, senão por falta de olhos.
26. Nasceu, no primeiro dia do mundo, a luz, a qual não era outra coisa que um globo daquele luminoso acidente, criado na segunda ou terceira região do ar, dentro da qual fazia seu curso, dividindo o dia da noite, e dando desde logo, à duração composta de ambos, o período natural que hoje observam.
É porém coisa muito digna de admirar que, enquanto aquela primeira luz se conservou, no lugar onde foi criada, não houve olhos criados que a vissem, porque nem a terra e a água, criados no primeiro dia, nem o firmamento no segundo, nem as plantas e ervas no terceiro, tinham olhos.
Luzia a luz, e não havia olhos que a vissem luzir. Alumiava ela só o universo, e não havia, em todo o universo, olhos que se alumiassem com ela nem a vissem alumiar. Distinguia as noites e os dias, mas não havia olhos que notassem a igualdade e concerto desta distinção, nem se alegrassem com a presença da mesma luz, ou sentissem sua ausência.
Não sei se chame a isto desgraça da luz, se natureza do lugar ou região em que nasceu ao mundo.
Desenganai-vos, luz, ainda que, sejais a primogênita do Criador, e a primeira de todo o criado, que enquanto não sairdes do lugar onde nascestes, não há nem hão de haver olhos que se ponham em vós.
Saí, saí desse berço natural, em que nascestes, passai a outros lugares estranhos e remontados, e logo tereis olhos que vos vejam, que vos admirem, que vos amem, que vos celebrem, que vivam de vós, morram por vós.
Assim foi. Ao quarto dia da criação, tirou Deus a luz da região do ar, onde a criara, repartiu-a pelas esferas celestes, com forma e nome de sol, de luz e de estrelas; e logo, no quinto dia, e no sexto, se desfez o mundo todo em olhos no mar, olhos no ar, olhos na terra; olhos nas aves, olhos nos peixes, olhos nos animais terrestres; e, sobretudo, olhos no homem, que não só lograsse os resplendores da luz, mas desse os devidos louvores ao Criador dela.
De maneira que esta mesma luz que hoje vemos, e com que vemos todas as coisas, enquanto esteve, e não saiu do lugar e região em que nascera, nem ela se via, nem se viam com ela as outras obras admiráveis da Onipotência, e não por falta das obras, nem por falta da luz, senão por falta de olhos.
Isto é o mesmo que eu digo e suponho que havia de suceder a Santo Antônio.
27. Um dos mais famosos milagres que fez Cristo, Senhor nosso, foi o vulgarmente chamado do diabo mudo, porque foram quatro milagres em um milagre.
O miserável homem era mudo, e falou; era surdo, e ouviu; era cego, e cobrou vista; era endemoninhado, e ficou livre do demônio. Pode haver maior fecundidade de milagres?
As árvores muito fecundas, como diz a nossa língua, dão os frutos em pinha. Mas vede qual era a terra onde nasciam. Começavam a se admirar as turbas à vista de tanto milagre junto: eis que, no mesmo ponto, chegam-se os escribas e fariseus, ao mesmo obrador daqueles milagres, e dizem-lhe assim:
Mestre, quiséramos ver um milagre vosso.
Magister volumus a te signum videre (Mt. 12, 38):
Há tal pedir, e em tal ocasião, e naquele mesmo lugar? Não acabavam estes homens de ver um milagre, e quatro milagres?
Não. Cristo era o que tinha acabado de os fazer; mas eles não tinham acabado nem ainda começado a os ver. E por quê? Não por falta dos milagres, senão por falta de olhos.
Queremos ver
Volumus videre
Queremos ver - disseram, e disseram bem, porque o que lhes faltava não eram milagres que ver, eram olhos com que vissem os milagres.
Assim lhe havia de suceder a Santo Antônio. A ele não lhe haviam de faltar os milagres, mas aos milagres haviam de lhe faltar os olhos. Logo, em tal terra, e entre tais homens, não podia o santo fazer o que Cristo lhe mandava, que era luzir de maneira que os homens o vissem:
Assim brilhe a vossa luz diante dos homens,
Para que vejam
Sic luceat lux vestra coram hominibus: ut videant.
E se me perguntardes a razão por que naquela terra há tanta falta de olhos, ou de olhos que vejam a luz, nas mesmas palavras a temos. A luz há de luzir:
Assim brilhe;
Sic luceat
Os homens hão de a ver:
Para que vejam;
Ut videant
E olhos que vejam luzir a luz não os pode haver em uma terra onde a mesma luz os faz cegar.
Ouçamos ao mesmo Santo Antônio, que, como prático do país, conhecia bem as causas deste terrível efeito:
Invidus, si esset in caelo, ibi totaliter excaecaretur
a gloria proximi et a luce beatitudinis ipsorum:
São tão incapazes os olhos do invejoso de ver luzir - diz Santo Antônio - que, se um invejoso fosse ao céu, logo havia de ficar totalmente cego, porque a luz da glória e bem-aventurança do próximo o havia de cegar.
Do próximo disse, e não do bem-aventurado, com grande elegância e energia, porque a inveja, sendo dor de olhos, é de olhos que olham ao perto - proximi - e não ao longe.
E se isto, em sentença de Santo Antônio havia de suceder ao céu, por que lhe não sucederia a ele o mesmo na terra, e mais na sua?
28. Saiu Davi contra o gigante, aplaudiu-se a vitória como merecia, e diz o texto que desde aquele dia nunca mais Saul pôde ver a Davi:
Daquele dia, pois, e em diante,
não via Saul a Davi com bons olhos.
Non rectis ergo oculis Saul aspiciebat
David a die illa, et deinceps (1 Rs. 18, 9).
Vede os contrários efeitos daquela animosa e venturosa pedrada. O tiro foi um, e as feridas duas: ao gigante feriu na testa, e a Saul quebrou-lhe os olhos.
Tudo lhe sobejou a Davi para os aplausos, só lhe faltaram os olhos de quem mais o devia estimar e aplaudir. Mas se Saul era tão invejoso, por que invejou uma vitória de Davi, e não quarenta vitórias do gigante?
Desde aquele dia
A die illa
desde aquele dia, diz o texto que começou a inveja de Saul, e eu cuidava que havia de começar quarenta dias antes. Quarenta dias contínuos saiu o gigante a desafiar, ele só, os exércitos de Saul.
E em todos estes quarenta dias se recolheu para a sua tenda, com outros tantos triunfos, não só vencedor das mãos e das armas, senão dos corações, e do próprio conhecimento dos israelitas, não se atrevendo nenhum a sair a campo com ele, e confessando com o temor a vantagem, que é a maior vitória de todas.
Pois, se Saul é invejoso, por que não inveja a Golias, senão a Davi? Porque Golias era filisteu, e Davi israelita.
Golias era de outra terra, e doutra nação; Davi era da sua pátria, e do seu próprio sangue. Por isso não teve coração para o estimar, nem boca para o aplaudir, nem olhos para o ver, ou poder ver.
Para que se veja se acharia Santo Antônio olhos na sua pátria, que com a luz de suas maravilhas - como ele mesmo diz - se não cegassem de inveja, e totalmente as não vissem:
Ficaria totalmente cego
Totaliter excaecarentur.
29. Também contra este discurso vejo que pode haver quem argumente, e também com a mais qualificada prova, que é a da experiência.
Todos sabemos quanto Lisboa se honra de ter um filho como Santo Antônio; os teatros e jogos públicos, com que o festeja; os aplausos, os panegíricos, os poemas, com que celebra estas mesmas maravilhas que obrou nas terras estranhas. Logo, não é de tão má condição a sua pátria, que não houvesse de estimar as mesmas obras gloriosas, se fossem feitas nela, nem são tão maus ou tão cegos os seus olhos, que as não houvessem de ver.
Aceito outra vez, e estimo a instância, porque tão longe está de impugnar o meu discurso, que antes o confirma mais.
Ainda não tendes advertido que a inveja faz grande diferença dos mortos aos vivos, e dos presentes aos passados?
Os olhos da inveja são como os do sacerdote Heli, dos quais diz o texto sagrado que não podiam ver a luz do Templo, senão depois que se apagava:
Os seus olhos se tinham escurecido, e não podia ver,
antes que se apagasse a lâmpada do Senhor
Oculi ejus caligaverant, nec poterat videre lucernam
Dei antequam extingueretur (1 Rs. 3, 2)
Enquanto as luzes são vivas, cada reflexo delas é um raio que cega os olhos da inveja; porém, depois que elas se apagaram, e muito mais se se metem largos anos em meio, então abre a inveja, como ave noturna, os olhos; então vê o que não podia ver; então venera e celebra essas mesmas luzes, e levanta sobre as estrelas seus resplendores.
Por isso disse com grande juízo S. Zeno Veronense, que todo o invejoso é inimigo dos presentes, e amigo dos passados:
In omnibus se inimicum praesentium servat,
amicum vero pereuntium.
30. Os mesmos que agora amam e veneram tanto a Santo Antônio, se viveram em seu tempo, o haviam de aborrecer e perseguir; e as mesmas maravilhas, que tanto celebram e encarecem, se foram obradas na sua pátria, as haviam de escurecer e aniquilar. Não tenho menos fiador desta, que só parece conjectura, que a verdade do mesmo Cristo. É um lugar da História Evangélica, antes de bem entendido, escuro; mas, depois de entendido, singularmente admirável.
Os escribas e fariseus do tempo de Cristo, que eram os mais doutos e religiosos, em nenhuma coisa se esmeravam tanto, como em edificar mausoléus aos profetas, e ornar e renovar os sepulcros dos santos antigos.
À vista, pois, destas fábricas, e do que sobre elas diziam, repreendeu-os o Senhor asperamente, e exclamou contra eles desta maneira:
Ai de vós, escribas e fariseus hipócritas,
que edificais sepulcros aos profetas, e ornais os monumentos
dos justos, e dizeis que, se vós vivêreis no tempo de vossos pais, que os perseguiram e mataram, não havíeis de ser cúmplices nas suas mortes, nem ter parte no seu sangue!
Vae vobis scribae et pharisaei hypocritae, qui aedificatis sepulchra prophetarum, et ornatis monumenta justorum, et dicitis: Si fuissemus in diebus patrum nostrorum, non essemus socii eorum in sanguine prophetarum (Mt. 23, 29 s)
Até aqui parece que não havia matéria de repreensão, senão de louvor, porque tudo era honrar e venerar os santos, e detestar o sacrilégio e tirania dos que os tinham perseguido e morto. Mas o que mais acrescenta a dificuldade e admiração, é o motivo da mesma repreensão, que o Senhor prossegue, e a conclusão, que infere daquelas mesmas obras:
Daqui se prova bem - diz o Senhor - e vós mesmos testemunhais contra vós, que sois filhos e imitadores daqueles que mataram os profetas, e que, em edificar e ornar os seus sepulcros, acabais de encher as medidas do que vossos pais começaram.
Itaque testimonio estis vobismetipsis, quia filii estis eorum,
qui prophetas occiderunt: et vos implete mensuram patrum vestrorum (ibid. 31 s):
Não pode haver mais notável conseqüência, nem mais dificultoso modo de inferir! Se o Senhor dissera: Vós matais os profetas, e perseguis os justos, como vossos pais os mataram e perseguiram - bem se inferia que, como filhos de seus pais, eram também seus imitadores.
Mas, se os pais mataram os profetas, e os filhos lhes edificavam magníficos sepulcros; se os pais derramaram o sangue dos justos, e os filhos os veneravam e honravam; se os mesmos filhos condenavam o que seus pais tinham feito, e protestavam que, se viveram no seu tempo, haviam de fazer o contrário: como afirma a verdade de Cristo que tudo isto era hipocrisia e falsidade, e que as mesmas obras presentes, posto que tão diversas, eram testemunho e prova de que haviam de fazer o mesmo que seus pais fizeram?
Se nas sentenças divinas pode haver superlativo, esta verdadeiramente foi diviníssima.
Todos aqueles profetas e santos antigos, cujos sepulcros agora veneravam tanto, tinham sido perseguidos e mortos por inveja de seus próprios naturais, como homens enfim maiores, e mais eminentes que os outros na sua pátria; e daqui se seguia, como inferiu a suma Verdade, que todo o culto e veneração, com que os descendentes daqueles mesmos pais agora os celebravam, não era prova de que eles não houvessem de fazer o mesmo se vivessem no seu tempo. Antes provava e testemunhava contra eles, que também os haviam de perseguir e matar, porque é conseqüência própria e natural da inveja perseguir os presentes e estimar os passados, matar os vivos e celebrar os mortos.
31. Assim que, todas essas festas públicas, todos esses panegíricos e aplausos, com que hoje celebra Lisboa e Portugal o seu português, tão longe estão de provar que no tempo em que vivia Santo Antônio houvessem de fazer o mesmo, que antes são testemunhos públicos e autênticos do contrário, e que essas mesmas maravilhas, que hoje tanto celebra e festeja a sua pátria, se ele as obrara na mesma pátria, hoje faz quatrocentos anos, quando vivo, nem então haviam de ser maravilhas, nem haviam de luzir como tais, nem haviam de ser vistas, quanto mais celebradas, porque os olhos da inveja são como os de Heli, que, enquanto se não apagam as lâmpadas, não vêem as luzes:
Não poderia ver a lâmpada do Senhor, antes que se apagasse.
Nec poterat videre lucernam Dei, antequam extingueretur.
VIII
32. Temos visto que as obras ilustres e gloriosas que Santo Antônio obrou nas terras estranhas, não as havia de fazer na sua, e que, ainda que as fizesse nela, não haviam de ser vistas: agora digo, e concluo, que ainda que fossem feitas e vistas, por isso mesmo não haviam de ser boas:
Para que vejam as vossas boas obras.
Ut videant opera vestra bona.
A razão desta lastimosa verdade, em suma, é por que em havendo olhos maus não há obras boas.
Boa obra era, e canonizada por boa, derramar a Madalena os ungüentos preciosos sobre os pés do Salvador:
No que fez, me fez uma boa obra
Opus enim bonum operata est in me (Mt. 26, 10).
Mas, como eram maus os olhos de Judas, logo essa mesma obra foi murmurada e reputada por não boa:
Para que foi este desperdício?
Ut quid perditio haec? (ibid. 8)
Boa obra era, e também canonizada por boa, a graça que o pai de famílias fez aos últimos que vieram trabalhar à sua vinha; mas também a murmuraram, e se escandalizaram dela os companheiros:
Murmuravam contra o pai de famílias.
Murmurabant adversus patrem famílias (Mt. 20, 11).
E por quê? Porque, ainda que a obra era boa, os olhos eram maus:
Acaso o teu olho é mau porque eu sou bom? (ibid. 15)
An oculos tuus nequam est, quia ego bonum sum?
33. Basta que, porque eu sou bom, hão de ser os vossos olhos maus?
Sim, e não é necessário outro porquê. Antes, deste mesmo porquê, e desta mesma causa, resulta outro efeito ainda pior.
Porque eu sou bom, os vossos olhos são maus? E porque os vossos olhos são maus, eu hei de deixar de ser bom?
Assim sucedeu ao pai de famílias: porque ele era bom, e a graça que fez era boa, os olhos que a viram foram maus; e porque os olhos que a viram foram maus, a graça, e quem a fez, deixaram de ser bons, e por isso foram murmurados.
Notai este terrível e diabólico círculo, que a inveja faz, com causalidade recíproca, entre a potência de ver e o objeto visto.
A vista, ou se faz por espécie, que o objeto manda à potência, ou por raios, que a potência manda ao objeto. Estas duas opiniões contrárias dos filósofos, conciliou e ajuntou a inveja para fazer guerra ao bem que não pode ver. Pelas espécies que saem do objeto, faz que, sendo o objeto bom, os olhos sejam maus; e pelos raios que saem dos olhos, faz que, sendo os olhos maus, o objeto não seja bom.
De maneira que a bondade do objeto faz a maldade da potência, e a maldade da potência desfaz a bondade do objeto.
Porque eu sou bom, os teus olhos são maus, e porque os teus olhos são maus eu não hei de ser bom.
Vede se, metidas entre tal casta de olhos, podiam ser as obras de Santo Antônio boas:
Para que vejam as vossas boas obras
Ut videant opera vestra bona.
34. E se algum curioso, admirado de tais efeitos, me perguntar qual é o segredo desta maldita filosofia, respondo que o segredo é porque os olhos da inveja nunca vêem sem dar olhado.
Oh! que belo menino! - diz o que dá olhado. - E no mesmo ponto se murchou aquela beleza, e o menino definhou, até que morreu de todo.
Se o olhado chegara ao céu, tanto que estes maus olhos se fitassem no sol, logo aquela imensa e formosa luz, que doura e alumia o universo, se havia de eclipsar e escurecer.
E isto mesmo que o olhado não pode fazer no sol do céu, sem dúvida o havia de fazer no sol da terra, se a luz e obras gloriosas de Santo Antônio fossem vistas na sua.
Mandou-lhe Cristo que a sua luz resplandecesse de tal modo diante dos homens, que eles vissem as suas obras boas:
Tanto brilhe a vossa Luz diante do homens
Que eles vejam as vossas boas obras.
Sic luceat lux vestra coram hominibus:
ut videant opera vestra bona
Se a luz de suas obras, ou as suas obras de tanta luz, com que esclarecia o mundo, fossem feitas e vistas na sua pátria, logo a luz havia de ficar eclipsada, e a bondade das obras escurecida, porque os mesmos olhos que as vissem lhes haviam de dar olhado, e as mesmas obras boas, e tão boas, assim vistas, ou olhadas, haviam de deixar de ser boas.
Não é consideração ou malícia minha, senão oráculo expresso do Espírito Santo:
O olhado dos olhos maus escurece todas as obras boas.
Fascinatio nugacitatis obscurat bona (Sab. 4, 12)
Chama-se este olhado o olhado da zombaria:
Fascinatio nugacitatis
Porque os invejosos zombam do que haviam de admirar, e fazem farsa do que deviam aplaudir. E é traça de desfazer e desmentir o mesmo bem, que reconhecem, rirem-se por fora do que os faz chorar por dentro.
Obrigação tinha logo Santo Antônio de buscar outros olhos, mais benignos e menos venenosos, porque, se o efeito do olhado é escurecer:
Fascinatio obscurat
como podia a luz de Santo Antônio luzir:
Sic luceat lux vestra?
E se o que escurece o olhado são as boas obras:
Obscurat bona
Como podiam as obras de Santo Antônio, vistas por tais olhos, parecer boas:
Ut videant opera vestra bona?
35. Para que vejamos, nas mesmas obras boas e tão gloriosas de Santo Antônio, como isto havia e podia ser, é necessário que advirtamos primeiro uma notável habilidade e astúcia que usa a inveja para desluzir e escurecer as boas obras, e para lhes envenenar e destruir a mesma bondade.
E qual vos parece que será esta habilidade e astúcia?
É que nunca olha para toda a obra boa, de claro em claro, assim como é em si mesma, senão que sempre procura tomar por um lado, e por aquela parte ou ponta donde menos claramente se descobre a sua bondade, para ter em que morder e que argüir.
Balac, rei dos moabitas, tendo à vista os arraiais do povo de Deus, de que era capital inimigo, subornou, com grandes promessas, ao profeta Balaão, para que os amaldiçoasse.
Subiu-se o profeta a um monte, donde se descobriam todos os arraiais, e viu neles tal ordem, tal concerto, tal grandeza e majestade, que, em lugar de os amaldiçoar, os abençoou, e disse e profetizou deles grandes maravilhas.
Que faria o rei ouvindo isto?
Queixou-se muito a Balaão de que fizesse tanto pelo contrário o que entre ambos estava concertado. E como ele se escusasse que não pudera falar contra o que vira, nem dizer mal do que lhe parecera mais que bem, o meio que de novo lhe ofereceu e aconselhou o rei foi este:
Vinde comigo a outro lugar donde vejais só parte de Israel,
e não o possais ver todo, e daí o amaldiçoareis.
Veni mecum in alterum locum, unde partem Israel videas,
et totum videre non possis, inde maledicito ei (Núm. 23, 13)
De sorte que entendeu sagazmente o rei que aquilo mesmo que, vendo-se todo, e como é, não se pode amaldiçoar, visto só por algum lado, pode ser capaz de maldição.
E este é o ditame e a astúcia da inveja. Olha para as coisas grandes de modo que se não vejam todas, senão alguma parte, e essa a menos luzida; e desta sorte não há obra tão boa, que por mal vista não possa ser maldita.
36. Ninguém fez neste mundo tão boas obras, nem tão manifestas, nem tantas, como o Filho de Deus:
Eu tenho-vos mostrado muitas obras boas,
que fiz em virtude de meu Pai.
Multa bona opera ostendi vobis ex Patre meo Pai (Jo. 10, 32).
Mas vede por que lado as via, e como olhava para elas a inveja, que por elas o pôs na cruz.
Se tirava a Mateus do telônio, e Zaqueu das usuras, não dizia que convertia os pecadores, senão que tratava com publicanos.
Se dava vista ao cego de seu nascimento, fazendo um pequeno de lodo, e pondo-lho nos olhos,
e se ao paralítico de trinta e oito anos mandava levantar do leito, e torná-lo às costas, não dizia que fazia milagres, senão que quebrantava o sábado.
Se nas bodas de Caná persuadia (...) a João, e, convidado pelo fariseu, defendia a penitência da Madalena, e no banquete do outro príncipe repreendia a soberba dos primeiros lugares, e louvava a modéstia e humildade dos últimos, não dizia que das mesas fazia escola de virtudes, senão que andava em convites.
Se via o concurso das gentes, umas sobre outras, a tocar as vestiduras sagradas, e receber saúde, não dizia que sarava os enfermos, senão que perturbava e inquietava a república.
E se deste modo eram vistas as boas obras de Cristo pelos olhos dos seus naturais, como veriam as de Santo Antônio ser boas:
Para que vejam as vossas boas obras?
Ut videant opera vestra bona?
37. Dai-me licença que eu me revista um pouco de humor invejoso, e vede como haviam de ser avaliadas, na sua pátria, as obras boas, e tão boas, de Santo Antônio.
Quando vissem que deixava a sobrepeliz e murça de Santa Cruz, e se passava ao hábito de S. Francisco, e que trocava o nome de D. Fernando pelo de Fr. Antônio, não haviam de dizer que buscava maior aspereza e humildade, senão que era um moço vário e inconstante, e que não podia ser bom espírito o que deixava a primeira vocação.
Quando ouvissem que, tendo deixado Portugal para ir buscar o martírio a África, se embarcava outra vez da África a Portugal, para buscar e recuperar a saúde nos ares pátrios, bem se vê o que diriam: que os martírios vistos de perto são muito mais feios que de longe; que aqueles fervores de ser mártir, com as águas do Mediterrâneo se tinham apagado, e que mal teria coração para dar a vida quem tão amigo era da saúde.
A passagem ou arribada a Sicília e Itália claro é que se havia de atribuir à tempestade e acaso, e não a mistério da providência, que o levava onde tanto se queria servir dele.
E quando se visse que com tão poucos anos, de hábito e de idade, se punha em campo contra Fr. Elias, que relaxava a pobreza e primitiva regra seráfica, não haviam de dizer que aquilo era zelo da religião, senão
desobediência ao Diretor
divisio a capite:
que era desobediente e rebelde ao seu geral; que era sedicioso e perturbador da Ordem; enfim, que obrava como filho de seu pai, e não como filho de S. Francisco; e, para maior energia e propriedade da sátira, aqui lhe haviam de encaixar o sobrenome de Bulhão, que tinha deixado no mundo.
Quando, ouvindo a confissão do outro moço, que tinha pisado a sua mãe, lhe afeiou a enormidade daquele desacato, com tal eficácia, que o moço assombrado se foi cortar o mesmo pé, não haviam de reparar em que o santo lho restituíra outra vez milagrosamente, mas que era tão indiscreto nas repreensões dos pecadores, que não merecia ter assento no tribunal da benignidade e misericórdia de Cristo, e que devia a religião privá-lo do confessionário.
Se se dissesse que homens e mulheres se levantavam de noite para ir tomar lugar no campo, onde havia de pregar Santo Antônio, e que a outra mãe, pela mesma causa, deixara só o filhinho, que inocentemente se deitou em uma caldeira de água fervendo, que motivos tão aparentes teria a inveja para dizer que aquelas pregações e aqueles concursos mais eram para destruição das almas e das vidas que para edificação?
Que direi do partido em que o santo veio com os hereges, de que a mula esfaimada de três dias, com o pasto natural diante, e o pão do céu à vista, decidisse a controvérsia? Qual temeridade - diriam - pode ser maior, e mais precipitada, que no mistério mais sagrado da nossa fé fiar a demonstração da sua verdade da contingência de um sucesso tão dificultoso, o do apetite irracional, e da fome irritada de um bruto?
Outra vez, tendo fugido um noviço do convento, mandou o santo ao demônio que, com uma espada nua, o esperasse ao passar de uma ponte, e o fizesse tornar para donde viera; e não haviam de dizer que até o inferno obedecia a Antônio, senão que era homem de tais artes, que tinha trato secreto e familiar com os demônios, e, ao menos, que usava de meios tão suspeitosos, que deviam ser delatados ao Santo Ofício.
Já, se lhe sucedesse então o que depois experimentou Roma, na Igreja antiga de S. Pedro, quando o Pontífice mandou que, em lugar de uma imagem de Santo Antônio, se pusesse a de S. Gregório, que diria a piedade e devoção portuguesa? Foi o caso que, subindo o pedreiro para picar a parede, levantou (diz a história) o picão, e, dando o primeiro golpe in capitio, no capelo do santo, ele despregou a mão pintada, e, deitando a rodar o pedreiro e o andaime, com um fracasso que fez tremer toda a basílica, meteu outra vez a mão na manga, e, defendendo desta sorte o seu posto, ninguém se atreveu mais a o tirar dele. E fradezinho menor, que não cede o seu lugar nem a um santo, como S. Gregório Papa, nem por mandado de outro Papa, e que, tanto que lhe tocam e o picam, dá com tudo a rodar, e que à primeira picada não espera pela segunda, porque não sabe levar duas em capelo, pintado português será ele, mas santo, isso não.
38. E se as boas obras de Santo Antônio assim haviam de ser, ou assim podiam ser interpretadas na sua pátria - como ela costuma interpretar e acusar outras verdadeiramente boas, e tanto mais quanto mais têm de maravilhosas - fez muito bem e andou muito prudente o santo em as vir obrar em terra onde fossem estimadas, como mereciam, e vistas como Deus lhe mandava:
Para que vejam as vossas boas obras
Ut videant opera vestra bona.
Naquele seu cântico triunfal introduz o profeta Habacuc a Deus saindo a obrar maravilhas em Babilônia, não por si mesmo, senão por seus ministros e instrumentos, e diz estas notáveis palavras:
Deus virá do meio-dia, e o santo aparecerá
do monte de Farã; o seu resplendor será como a luz,
e das suas mãos sairão raios de glória (Hab. 3, 3 s).
Deus ab austro veniet, et sanctus de monte Pharan:
splendor ejus ut lux erit, cornua in manibus ejus.
Diz, como coisa nova e rara, que será o seu resplendor à medida da sua luz:
O esplendor será como a Luz
Splendor ejus ut lux erit
Porque ordinariamente vemos grandes resplendores onde não há luz, e grandes luzes sem nenhum resplandor. O provérbio da nossa terra diz: Nem tudo o que luz é ouro. - Melhor diria, se dissesse: Nem tudo o que é ouro luz.
E como Santo Antônio na sua pátria era ouro, quando menos arriscado a não luzir, e luz arriscada a não resplandecer, como se havia de expor a estas contingências, se Cristo lhe mandava que luzisse a sua luz:
Brilhe a vossa Luz
Sic luceat lux vestra
Diz mais o profeta que esta luz resplandecente levava nas mãos o que os touros trazem na cabeça:
Saiam raios de luz de suas mãos
Cornua in manibus ejus.
E se vos admira a frase, e quereis ouvir a interpretação própria desta que parece impropriedade, sabei que a palavra comua, referindo-se, como aqui se refere, à luz, quer dizer resplendores. Por isso dos resplendores que lançava de si o rosto de Moisés, se diz no texto sagrado:
Do seu rosto saíam raios de Luz
Cornuta erat facies sua (Êx. 34, 29).
- E estes resplendores nasciam e estavam nas mãos
in manibus ejus
porque nas mãos e nas obras se hão de ver, como se viam as de Santo Antônio:
Para que vejam as vossas boas obras.
Ut videant opera vestra bona.
39. Finalmente, diz que esta mesma luz, ou este mesmo santo, saiu do Monte Farã: Et sanctus de monte Pharan - com grande mistério, porque o Monte Farã, como declaram e trasladam os Setenta, é o mesmo que o monte das sombras: De monte umbroso - e para a luz luzir, e as boas obras resplandecerem, é necessário que saiam e se apartem da terra das sombras, onde elas as podem eclipsar e escurecer.
Por isso Santo Antônio saiu da sua, com divina prudência e providência; e porque esteve fora da terra das sombras, por isso a luz das suas obras luziu e resplandeceu, de maneira que os olhos dos homens puderam ver obras de tanta luz:
Brilhe a vossa Luz diante dos homens
Que vejam as vossas boas obras.
Sic luceat lux vestra coram hominibus,
ut videant opera vestra bona (Mt. 5, 16).
IX
40. Tal foi, senhores, hoje faz um ano, a luz, e tais são hoje as sombras que nos deram matéria à primeira e segunda parte deste sermão, ou destes dois sermões. O primeiro todo de luz, e o segundo todo de sombras.
E, tendo eu dado fim, como tenho, a um e outro discurso, que colherei de tão estranho assunto, para dizer ao nosso santo português, e a todos os portugueses?
A vós, meu santo, só digo que vos dou o parabéns e os devidos louvores, não por outro motivo, senão pelo mesmo com que se queixava de vós a pátria, invejosa de Itália, e não por outro exemplo, senão pelo mesmo que ela alegava de José, ao qual mais generosamente antes quisestes emendar que seguir. Ele mandou trasladar seu corpo do Egito para a sua pátria: e quem o poderá livrar de ingrato nesta eleição, e de injusto nesta preferência?
Na pátria foi perseguido, foi preso, foi vendido, e, para dizer tudo em uma palavra, foi invejado de seus próprios irmãos.
No Egito foi amado, foi estimado, foi adorado, e preferido pela mesma majestade a todos os naturais, sendo estrangeiro.
E se a pátria, em suma, de livre e senhor o fez escravo, e o Egito de escravo príncipe, devendo José eternizar a memória de tamanhas obrigações, quando menos nos mármores do seu sepulcro, que as esqueça, as desconheça, e quase as despreze, pelo amor tão mal merecido da terra indigna em que nascera!
Não há dúvida que se pode pôr em questão se foi mais ingrato José com o Egito, ou a sua pátria com ele.
Não assim o generoso e fiel ânimo de Antônio, e por isso antes de Pádua que de Lisboa.
Não teve agravos que perdoar à pátria, porque os antecipou, com fugir dela. Foi porém tão reconhecido, e tão agradecido às honras que recebeu da devoção, da piedade, e da nobreza de Itália, posto que terra estranha, que, não tendo outra coisa que lhe deixar - como aquele que tinha deixado tudo - por prenda de seu amor, por memorial de sua gratidão, e por fiador perpétuo de seu patrocínio, deixou nela o depósito de seus sagrados despojos, para que também entendam todos os que amam, veneram e servem a Santo Antônio, de qualquer nação ou condição que sejam, que servem a tão bom pagador, que não sabe dever o que deve, e que só é natural das suas obrigações, porque não reconhece outra pátria.
[1] Signum magnum apparuit in caelo: Mulier amicta sole, et luna sub pedibus ejus, et in capite ejus corona stellarum duodecim: et in utero habens, clamabat parturiens. Visum est et aliud signum in caelo: et ecce draco magnus; et draco stetit ante mulierem, quae erat paritura; ut cum peperisset, filium ejus devoraret
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